sábado, 22 de janeiro de 2011

Homem confiante no sinistro fim do mundo

É até onde me lembro.
Estava um cão de rua esventrado no meio da estrada de alcatrão, a sangrar interminavelmente. Daquele corpo não podia verter tanto sangue, mas assim acontecia. Uma poça enorme alastrando cada vez mais. O cão tinha um corte na zona abdominal, era um rafeiro já muito velho; surrealista que estava ainda vivo. Quando revirou os olhos, o momento da sua morte, o sangue deixou de expandir em diâmetro e formou um fio corrente pelas ruas. Enquanto caminhava seguindo o sangue, notei que mantinha-se quente, com o vapor do calor serpenteando no ar pelas ruas correndo. Sugiro que algo estava ali vivo muito próximo do que é animal.

Qualquer coisa mantinha-me acordado, com uma concentração fulminante, como se captar o que existe dependesse da minha sobrevivência, embora não aflito, tinha as sensações aguçadas e não controlava algumas coisas que fazia. Tentei ir por outro caminho que não o do sangue mas um medo estarrecedor, visceral, aplacou-me e assim fui pelo caminho. A minha mente parecia estar a interferir nos locais onde passava. Algumas imagens mentais projectaram-se na realidade objectiva. Ah e a luz agora estava verde. Sim, estava um grupo de pessoas encapuçadas de cruz na mão e em coro diziam: “A luz das máquinas é verde”, só isso, entoando num ritmo lento e quase monocórdico, grave. Pois era noite há tempo demais e a luz dos candeeiros tornaram-se verde e embora a minha concentração vívida e os encapuçados de rosto oculto já longe estarem, revoltava na minha cabeça o seu canto solene. Estava a dar comigo em louco e as luzes cada vez mais verdes. Não estava em controlo da situação e agora que repenso nisto as cruzes estavam viradas ao contrário. Confuso tento fazer sentido: ”verdes são as notas”. Grande esforço de vontade para fazer sentido… uma lucidez plácida seguido de uma concentração ainda maior e a luz voltou ao amarelado normal. É uma luz mais “quente”. Quando pensei nisso senti calor nas pernas e julgava ser a mente a interferir na realidade que já não sabia ser objectiva. Era sangue. Mas não era meu, tinha uma faca de mato no cinto de cabedal e lembrei-me do cão esventrado. Espanto! – fui eu que comecei com este trilho de sangue- E nesse momento o sangue parou de escorrer pela rua. A medo afastei-me, mas nenhum sinal daquele terror bafiento. “Para onde vou?”
A concentração era agora sobrenatural e o ambiente condensava.
Percorri uma viela sem iluminação apenas uma aparição tosca da lua refulgindo nos objectos. Há tempo demais que não via ninguém, os prédios não tinham janelas, eram paredes rugosas enegrecidas. Lixo e cheiro a gordura. Concentrado. Mal havia céu. Os prédios eram torres robustas altas como arranha-céus. Vi um candeeiro acesso, mais próximo um vulto sossegado de cigarro na mão, em gestos lentos leva o cigarro à boca e expele o fumo para cima com convicção, vadeando pelo ar. Aproximo-me medindo os passos, a certa distância dele cumprimento-o.
Tinha um chapéu que fazia sombra na sua face.
Homem confiante no sinistro fim do mundo – Ainda bem que conseguiste afastar do sangue, não era suposto ele te levar a mim. Nesta vida…
Eu – Quem és tu?
Homem confiante no sinistro fim do mundo – Uma imagem na tua cabeça; sou apenas uma ideia
Eu – Estou a imaginar-te?
Homem confiante no sinistro fim do mundo – O mundo está a acabar, isso não é importante, tens de apreciar o fim do mundo; queres um cigarro?