quarta-feira, 25 de março de 2009

O Grotesco

Havia a centelha visceral devorando ávida tudo o que separa.
As pupilas dos seus olhos dilatam-se, na noite madura de quarto crescente fusco que finalmente nos deixa a sós. Eu próprio devia demonstrar tal, estava expansivo no arder transcendental do meu desejo. Ela dilacera num movimento hábil a sua maquilhagem e despe a sua camisa de veludo.
Diz que é uma calamidade nas suas crenças surpreendidas, mas que voltou a confiar nas pessoas porque me conheceu. O seu semblante imperfeitamente borrado empalidece de expressão. Pega na lâmina tosca e rasga a pele abdominal num eco viscoso. As entranhas fedem para cima da mesa de madeira velha que absorve num crepitar o vermelhão escuro do seu sangue. Olha-me em sensível expectativa.
- Não tenho asco de ti…sabes o que isso significa? – e retiro da sua mão a faca ensanguentada com delicadeza, fito-a por um momento intemporal, até que irrompe um sorriso disforme e me diz pausadamente:
- Fá-lo. Confia. Abre-te.
Lentamente rasgo também o meu corpo, numa sensação morna de arrepio, vejo as minhas entranhas rolarem para a mesa. Os fluidos intestinais misturam-se num abraço consagrado de íntimo significado. Embebidos na aceitação em comunhão devota, o bafo misterioso do grotesco, ali, diante de nós, tornado renascença.

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